Bruno e a caneta – A história




Mesmo disposta a desbravar, experimentar, saborear e curtir as novidades e diferenças sou já/ainda uma pessoa condicionada a defender-me diante de situações suspeitas. Ilustrarei esta afirmativa relatando o seguinte episódio: Bruno e a caneta.

Ia eu, numa tarde úmida de domingo, a passear com dois amigos por Santo Amaro da Purificação. Mais exatamente no local onde, aos sábados, acontece a feira de alimentos da cidade. Nosso destino inicial neste dia não era Santo Amaro e sim Cachoeira. Mas, livres como nos sentíamos naqueles tempos, resolvemos parar na cidade vizinha a fim de andar um pouco. Não tínhamos pressa, até por que, não tínhamos compromisso algum naquele fim de semana. O nosso único compromisso era com a nossa liberdade; com as possibilidades que criávamos indo em busca daquilo que nos alimentava a inspiração, que nos fazia rir, refletir, amar...
Pois bem, íamos os três: uma russa naturalizada americana; dois soteropolitanos amantes do recôncavo e de sua gente. O local, onde abriga a feira todos os sábados, estava vazio. Mais parecia um cemitério. O ar estava úmido e fresco anunciando a chuva que mais tarde quebraria aquele silêncio. Entre as barracas um velho vaqueiro. Pelo menos ele assim queria ser. Até já deve ter sido vaqueiro, provavelmente por muitos anos em sua vida. Conservava ainda o chapéu típico. Mas estava mesmo encharcado do álcool, que talvez fosse a forma mais óbvia e prática de livrar-se da dor do abandono, do sofrimento da fome diária, da falta de um afago ou atenção dos seus.
Além deste senhor sem dentes, estava lá debruçado numa das barracas um buquê de flores que pareciam um arranjo de flores do campo: miudinhas e da cor de alfazema. Quem as teria deixado ali? Parecia um presente, tão bem deixado em cima da barraca. Certamente, se alguém esqueceu lá, sentiu a falta delas.
Do outro lado da feira, sentado na soleira de uma das casas, dispostas uma ao lado da outra, sem nenhum espaço entre elas, estava um moleque.
Ele era magrelo. Aproximadamente doze anos. Mulato. Tinha os cabelos tingidos com água oxigenada. Não vestia camisa nem tinha os pés calçados. Veio em minha direção e chamou-me: Tia,...

Abre-se um parêntese. Aí, neste momento, como numa imagem congelada, começa o meu drama.

Assumi uma postura de defesa contra um moleque que poderia querer levar de mim algo de valor; poderia ele falar obscenidades; poderia também insistir para que lhe desse um dinheiro para que comprasse comida. Na minha cabeça, aquela criança, poderia as piores coisas.
Eu estava num lugar desconhecido; deserto, habitado apenas por um homem velho, bêbado e sem dentes; e um inerte buquê de lindas flores do mato.
A minha primeira reação à aproximação do menino foi mudar o tom da minha voz e tratá-lo como um brother – é assim que me porto, aqui em Salvador, quando me deparo com pessoas que inspiram mais cuidado – pois os brothers se reconhecem, falam a mesma língua. E, na língua que eu estava disposta a falar com ele não deveria haver medo, nem desconfiança, afinal de contas pretendia passar-me como brother daquele garoto.

Fecha-se o parêntese para seqüência da fala do menino:

"Tia, a senhora me dá uma caneta?"

O que acontece nesse momento, de forma muito íntima, é a sensação, em segundos, do mundo ruir diante das minhas pretensões e suposições preconceituosas.
A partir daí não lembro do desenrolar de nossa conversa, pois fiquei por demais emocionada com o pedido de menino/moleque: uma caneta! Era o que ele queria. Lembro-me, tão somente de seu nome: Bruno.
Então, possuída de emoção e desejando àquela criança melhor futuro que teve o velho vaqueiro dei-lhe a caneta Bic com que havia escrito todos os poemas desde o dia em que descobri que escrevia.
Era a primeira e abençoada caneta! Ela foi para as mãos de Bruno cheia da benção de todos os Santos e Deuses. Foi também cheia de afeto e de gratidão. Bruno me fez ver o meu engano!

Depois desta data, este fato rondou a minha existência de maneira devastadora. Pois, sentia uma enorme necessidade de extirpar o sentimento que me causava e isso eu só conseguiria escrevendo. Durante alguns meses não conseguia produzir uma linha sequer: a inspiração era insuficiente diante da magnitude de Bruno. E isso me incomodava a cada vez que lembrava de Bruno e não conseguia livrar-me da agonia.
Certo dia, viajando para São Francisco do Conde, num ônibus cheio de meninos, veio de forma precisa a Inspiração. E esta doeu muito. Talvez tenha sido o processo mais doloroso. O resultado foi Bruno e a caneta e outro poema intitulado Os versos. Este último nasceu a partir da dor e de toda sensação provocada por Bruno e a caneta.
Até hoje me causa angústia a lembrança deste episódio. E até hoje fico imaginado como seria bom rever Bruno.

Só se for natural...


O texto a seguir vai para além da “Nata do Para Poucos”. Acho a temática tão importante que vale à pena expandir. Mesmo que com isso eu esteja expondo, para além da “Nata”, minhas frágeis inquietações. Mas, por favor, não me exijam...


Figura 1 – Expressivos olhos verdes. Trazia uma argola que, para mim, era demasiadamente grande. Braços tatuados e adornados com correntes, além de um anel que me remetia às figuras bregas e de pouco “bom gosto”.

Figura 2 – Postura desajeitada; quase jocosa em sua calça jeans e camiseta básica de malha. Gorro de crochê cobrindo um resto de carapinha oxigenada. Olhos alquebrados de uma boemia sem fim. Fala arrastada e sem compromisso. Sem compromisso de enquadrar-se.

Das duas pessoas acima, rapidamente descritas, eu poderia ter certa ojeriza ou asco se me falassem delas como relato aqui, com tamanha brevidade. Contudo, eu as vi. E nisso, elas me “convenceram” de sua INFINITA BELEZA.

A primeira figura tinha olhar transparente e tranqüilo. A segunda, estava totalmente desprovida de arrogância. E elas não queriam “convencer” ninguém. Elas simplesmente estavam sendo elas. Pareciam estar no LIVRE EXERCÍCIO de EXISTIR tal como suas ALMAS sabem viver: desenquadradas.

Admirei a beleza deles. Quis beijá-los e ao som de suas vozes, eu, seminua, sambei livremente.


Estamos tão presos e acostumados às situações programadas que esperamos que TODO O MUNDO RESPONDA como responderíamos nós.
Ora, mas e a liberdade que eu desejo e que você deseja? Certamente, é também desejada pelo outro. Por este outro que nos incomoda quando não nos quer beijar; este outro que escolhe ouvir música sertaneja ou Asa de Águia; esta outra que sente as tão singelas e quase inocentes “borboletas na barriga” à carícia de uma outra mulher...

Sinceramente, ando incomodada com a constante necessidade de dar respostas; de me fazer entender; de não parecer egoísta...
Essa coisa de padrão e modelo tem sido tão forte que até eu ando me enquadrando. Pois é, percebi, há poucos dias, que não me dou o direito de, eventualmente, desistir dos meus maravilhosos cachos. Quando me dei conta que estava sendo tão radical fiz o exercício do desapego: dei escova nas madeixas. Não gostei, é bem verdade, mas precisava me permitir, experimentar.

Por favor, a esta altura da maratona, quando precisamos reaprender a consumir de modo mais inteligente; a nos alimentar sem agrotóxicos, a cuidar do corpo para que possamos beber mais, dormir menos; quando, em função de nossas conquistas, assumimos compromissos éticos e papéis sociais que devem ser incorporados à nossa rotina e, certamente, poderão remodelar nossos primordiais anseios de uma vida sem regras e sem compromissos... Isso tudo é tão difícil! consome energia, requer disciplina, atenção e cuidado! Ainda assim, nos damos ao desfrute de cuidar do passo do outro, do olhar do outro, da vontade e do desejo do outro... Pelo amor de Deus!

Não faço uma apologia à anarquia. Minha natureza não suportaria tamanha liberdade. Mas, o que tento provocar em nós, e é justamente o que tem me incomodado, é que observemos o quanto exigimos do outro.

Queridos, aproveito para desculpar-me pelas vezes que, de maneira infantil, exigi de vocês. Os quero como são. Na medida da convivência possível para continuar nos querendo bem. Muito bem. Bem demais, com direito ao prazer, ao deleite das nossas loucuras, ao riso – sem censura – diante do ridículo; que suportemos nossas lágrimas apaixonadas ou nossos gritos de fúria.
Tô com saudade de vocês.
Tô morrendo de saudade de mim. E é por isso que ando tão quietinha nos últimos tempos. Ando me procurando...
Lu Barros

“Nunca é igual
se for bem natural
se for de coração
além do bem e do mal
coisas da vida. . .”

Milton Nascimento / Fernando Brant

Abençoadas Águas




Abençoadas Águas
banhem de Amor
todos

os Nós
os Laços
as Tramas
as Redes...

Deitemos em nossas redes
com a doçura dos nossos sonhos
a nos embalar...
Vixe Mãe!

Me inunda
Me possua
Me alenta
Me acalenta

Tempo


Relógio do Senhor de Todas as Coisas

trabalha silencioso

Sem alarde dita e reedita

histórias entrelaçadas em paralelo

Sem nos consultar... trabalha



O Tempo das coisas... O Tempo das Coisas em mim.


Venho entendendo que coisas diversas têm o Tempo de entrar em nossas vidas.

Essas Coisas, que cruzam o nosso caminho, nas quais tropeçamos e muitas vezes desprezamos, às vezes – quando devido – dão meia-volta... voltam... podem até dar a volta ao mundo até chegar a nós novamente! Novo esbarrão... mais um tropeço?


Algumas Coisas são inteligentes e percebem que não há lugar em tempo algum. Estas, não voltam nunca mais. Outras desistem, cansam de insistir. Contudo, tem Coisas que esperam que digamos Sim para definitivamente ocuparem o lugar em nós.


A Salsa é uma dessas Coisas em minha vida!

A vida inteira desprezei-a: minimizei seu olor, seu sabor e sua Força; era indiferente a qualquer de suas qualidades. Todas as vezes que a salsa se aproximou de mim eu a preteri.
Generosamente, minha escolha sempre foi respeitada! Muito discreta, levava certo tempo para tentar nova abordagem. Nunca lhe fui agressiva, é bem verdade. Mas, a indiferença com que a tratei foi de uma crueldade sem fim. Acho que, se eu estivesse no lugar dela, já teria desistido de mim! Afinal, foi uma vida inteira de negação. Só agora, há pouco mais de 1 mês que a Salsa, finalmente, conquistou-me e, hoje, estamos em Lua-de-Mel!


Nota:
A salsa é uma planta herbácea, da família das Apiaceae, cujo nome científico é Petrosolium sativum.

Varal dos Sonhos











No varal dos meus sonhos
sou menina de novo.
Os mais doces e ternos
estão lá desde sempre.
Os mais absurdos
e menos prováveis
penduro com inocência
no cordão cor de ouro
a transpassar a sala da minha alma.
Em silêncio acrescento um a um.
Sem que possam desconfiar
encho o meu varal de ilusões...
... nem todas vãs

O cravo e a erva






A doce erva
tem o sabor
de tua pele

A distância...
Ah! esta
arde em mim
como cravo mordido

Do estado de admiração - para as minhas amadas amigas


Próprio dos tolos? Seriam os ingênuos seus representantes legítimos? Poderia apontar os fúteis como tais...
Mas, se eu resolver deixar de bobagem e parar de enquadrar os tipos neste estado, poderia chegar à conclusão que até os mais sisudos e céticos são, não raro, arrebatados pelo estado de admiração, quando tudo é mais belo; tudo é muito melhor do que normalmente é julgado ser; todo o menos será mais!
E não é uma questão de tolice, ingenuidade ou futilidade. Trata-se de estar disponível ao mundo no exercício da permeabilidade dos sentidos; de estar impressionada com a vida... Céu lilás-alaranjado nos finais de tarde de verão; uma fotografia; casal de idosos jantando à luz de velas; criança descobrindo o desejo; minha cara no espelho; meu primeiro cabelo branco; meu salto vermelho...
Eu me resgatando

Há calmaria...



Acalmaria em teus braços
se neles pousasse o querer
Acalmaria em teu peito
se deitasse nele o véu do amor
Acalmaria em teu colo...